Há saúde na doença?
Publicado por: Aline de Leo Malaquias dos Santos em 15/11/2012
Categoria: Psicologia
 
A especificidade do cuidado e da atenção à criança e ao adolescente com câncer tem sido um tema recorrente entre os profissionais de saúde que trabalham na Hematopediatria e na Oncologia Pediátrica de Hospitais da rede do SUS e participam do projeto de Atenção ao Vínculo e Qualificação da Comunicação em Situações Difíceis no Tratamento Oncológico (Projeto inaugurado em 2009, a partir da parceria Instituto Nacional do Câncer (INCA), Ministério da Saúde e Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein).

Crianças e adolescentes gravemente adoecidos, muitas vezes trazendo histórias de maus tratos e sérios distúrbios familiares em suas vidas, desafiam os profissionais que os acolhem para além dos protocolos, procedimentos e condutas estabelecidas frente ao tratamento da doença; neste caso, o câncer. A comunicação de notícias difíceis, neste campo, torna-se ainda mais difícil. Falar de câncer, de morte e mutilação na infância e na adolescência gera grande sofrimento tanto para quem recebe quanto para quem transmite a má notícia e, segundo os profissionais, demanda habilidade, controle emocional e uma experiência que não se aprende durante a formação: como dizer a uma criança de cinco anos que seu amiguinho, portador da mesma doença que ela, morreu? Situações como estas acabam mobilizando (e muitas vezes imobilizando) toda a equipe interdisciplinar, de modo que os diversos profissionais se revezam buscando apoio solidário nas diferentes especialidades. De fato, o sofrimento da criança e do adolescente nos afeta, particularmente, não apenas pelo lugar representacional da infância em nosso imaginário cultural. Mas, sobretudo, porque nos leva a revisitar nosso passado relacional, assim como nossas primeiras experiências de perda e desamparo. No entanto, esta identificação empática, esta disponibilidade para colocar-se no lugar do outro, embora sofrida, tem sua positividade quando acontece em um espaço de manobra saudável. Este mecanismo permite uma compreensão mais apurada e sensível das necessidades físicas, afetivas e sociais da criança e do adolescente neste contexto de sofrimento tanto físico quanto psíquico. Contudo, implicar-se mantendo a percepção de que sentimos com o outro e não por ele, torna-se fundamental.
O protocolo existente para a comunicação de notícias difíceis é plenamente reconhecido como um recurso útil, mas muitos profissionais concordam com o limite apresentado por instrumentos deste tipo. Fala-se do protocolo como guia, referência, norteador de ações, mas lamenta-se a falta de espaços coletivos que ofereçam atenção e cuidado para quem cuida. Porém, apesar do sofrimento e da dor presentes nos relatos apresentados ao longo dos nossos encontros, surge uma questão: que vocação é esta que nos conduz para este tipo de vivência cotidiana? Naturalmente não há lugar para uma única resposta, pois se trata de uma escolha singular, frente ao desejo e sobre determinada pela história de cada sujeito. Mas ela surge como uma pergunta que não quer calar. Como dar sentido a algo que nos é familiar e, simultaneamente, tão estranho? Eis um dos paradoxos que nos provocam. Outro, diz respeito à particularidade do comportamento da criança e do adolescente: como se pode brincar mesmo sob a espreita de acontecimentos tão trágicos, quando tudo parece perdido, à beira de um abismo? Mas o olhar sobre este fato - tão cotidiano na infância e na adolescência - pode situar-se para além da perplexidade. Não será a partir desta constatação que certo remanejamento das representações de saúde e doença torna-se possível? Haverá saúde na doença?
Pensar os estados de saúde e doença segundo uma lógica complexa, nos permite considerá-los conceitos voltados para a diversidade do ser vivo e da vida social cotidiana – duas dimensões múltiplas e complexas, em permanente estado de reorganização (desorganização e auto-organização). Ora, enquanto referidos a fenômenos transitivos, esses conceitos deslocam-se de uma dimensão identitária - ser doente ou ser saudável - para uma localização espaço-temporal: estar doente e/ou saudável, possibilitando deslocamento e, até mesmo, a simultaneidade destes estados. Portanto, positivar a saúde que habita a doença incentivando a imaginação e a criatividade que aparecem no brincar da criança e do adolescente - sua vitalidade essencial - parece ser um recurso de efeitos objetivos e subjetivos importantes. Contribui para a manutenção da provisão ambiental no tratamento destes pacientes, assim como lhes assegura o sentimento de continuidade de existir.
Há outro viés da atenção dirigida ao vínculo que também deve ser contemplado. No campo das relações afetivas que se estabelecem neste contexto, surge um consenso de que ao profissional de saúde não lhe compete tratar apenas da saúde/doença do corpo. As crianças, tanto quanto os adolescentes, convocam presença, interação afetiva e laço social. Buscam a constituição de um vínculo de confiança com o profissional e a equipe responsável pelos cuidados inerentes ao seu tratamento, na direção de um apego seguro. Trata-se de um agarrar-se ao outro, como forma de agarrar-se à vida. O apego seguro pressupõe a emergência de atos e palavras presentes na continuidade dos cuidados cotidianos. Há lugar para a comunicação não-verbal: a interpenetração do olhar que sustenta; a melodia da voz que acalma e ajuda a relaxar; as sensações reveladas através do toque sutil, não impositivo ao corpo. Sabe-se que o medo se intensifica no silêncio e no isolamento. O “banho” de palavras lança luz na escuridão, clareando e dando sentido aos vários procedimentos do tratamento. O gesto, acompanhado da fala esclarecedora daquele que cuida, incita a colaboração da criança, tirando-a, provisoriamente, da posição tão angustiante de impotência e desamparo. A saúde que habita a doença lhe permite ser protagonista e agenciador dos cuidados que necessita receber; a não perder o fio de sua própria história.
A atuação do profissional de saúde em contextos de trabalho como este - Hematopediatria e Oncologia pediátrica -, nos quais o impacto do sofrimento psíquico não cansa de revelar seus efeitos e evidências, demanda, cada vez mais, a criação de grupos/rodas de conversa voltados para o cuidado com o cuidador nos serviços dos hospitais. Pode-se dizer que a descoberta do valor da grupalidade solidária (não competitiva ou crítica) para a troca intersubjetiva e a construção de narratividade em um espaço protegido (de confiança), tem determinado, em grande parte, a apresentação desta demanda. Neste sentido, a saúde que habita a doença pode emergir das trocas inter e trans-subjetivas, entre o limite e a esperança, entre o sonho e a dor, entre a ilusão das garantias e o imponderável da vida cotidiana de cada um.


ALINE DE LEO MALAQUIAS DOS SANTOS É PSICOLOGA E COLUNISTA CONVIDADA.
(CRP - RJ 02483)


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Comentários (3)

Prezada Leila, Obrigada pelo comentário. Esclareço: desde 2009 os profissionais de saúde da rede oncológica dos Hospitais do SUS vêm participando do Projeto Atenção ao Vínculo e Qualificação da Comunicação em Situações Difíceis da Atenção Oncológica. Conforme mencionei no artigo, este projeto tem como objetivo acolher estes profissionais com a intenção de “cuidar de quem cuida”. Somos 15 pesquisadores, atendendo grupos com 20 profissionais de saúde de várias especialidades (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, etc.), na freqüência de um grupo semanal, durante 3 horas, num total de 14 encontros. A metodologia utilizada foi desenvolvida pelo médico sanitarista, professor da UNICAMP, Gustavo Tenório. Trata-se dos grupos Balint-Paidéia. Participam também residentes da Residência Multiprofissional do INCA, assim como da residência médica. O projeto contempla atualmente vários Hospitais da rede do SUS, não privilegiando mais apenas a rede oncológica. Costumamos dizer que trabalhamos com os afetos, os saberes e poderes inerentes à prática clínica. Se você quiser entrar em contato com mais informações, basta entrar no site do Ministério da Saúde e acessar o livro: “Comunicação de notícias difíceis: compartilhando desafios na atenção à saúde.” Este projeto encontra-se inserido no escopo da Política Nacional de Humanização do SUS. Atenciosamente, Aline De Leo M. Santos
Nome: Contato
Data: 22/7/2011
Aline, os médicos que tratam dessas crianças tem algum tipo de acompanhamento psicológico? Porque normalmente os doentes e as famílias que são os diretamente afetados tem, mas o fardo desses profissionais é muito grande. Eles passam por algum tipo de acompanhamento? Obrigada.
Nome: leila
Data: 21/7/2011
Achei lindo essa busca pela saúde que habita a doença. Esse trabalho é fantástico e merece muito reconhecimento.O câncer já é uma doença muitíssimo complicada e triste para os adultos, para crianças então, nem se fala. É magnífico que haja esse tipo de trabalho, até porque os profissionais que lidam com este tipo de situação acabam se envolvendo também de alguma forma e, por isso, temos que fazer o possível para que a doença não habite sua saúde, para que eles continuem fazendo o seu trabalho.
Nome: Neide
Data: 14/7/2011

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